sábado, abril 13, 2013

Extractos de uma espécie de diário - 2

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Entretanto, não queria deixar de guardar, em vários arquivos, a intervenção que me pareceu de fazer sobre o tema proposto e procurando integrá-la no que pensava serem (e acertei mais coisa menos coisa…) as outras intervenções:

«Há coisas que não se escolhem. Como a de se nascer europeu por o lugar, o País, o Estado-nação em que fomos dados à luz ficar no continente a que foi convencionado chamar Europa. Desse facto, para alguns já longínquo, não decorre, por si só, o sentimento de se ser europeu, à maneira que o nosso enorme poeta Cesário Verde tinha de falar do sentimento de um ocidental. Mas decorre a recusa, por quem juntar, ao sentimento, um grão de conhecimento e racionalidade…, a recusa da identificação da Europa com a Comunidade Económica Europeia, o que ela foi a 6, o que é, como União Europeia, a 17 ou a 27 ou a 17 mais 10, ou os do “centro” e os da “periferia”, que já foram da”coesão” (que Maastrich haja), depois de terem sido os PIGS, mais os de Leste que foram absorvidos. E, também, do que poderá vir a ser, ainda que seja a (ou uma) associação de todos os Estados-nações que, do Atlântico aos Urais, compõem (e decompõem) a Europa.
Teria sido, no entanto, aqui, na Europa, que tomou forma, se materializou esse conceito de Estado-nação, enquanto organização superstrutural das relações sociais, depois Estado-membro.
E se é verdade que Lawrence Durrell, em Quarteto de Alexandria (Baltazar), dizia ser a Europa um positivista lógico tentando provar a si próprio que existe, essa ousada afirmação seria questionável em relação à Europa-continente e realidade histórica e cultural, teria todo o sentido se apostrofando esta “Europa” entre aspas que teimam em confundir com a que aspas não tem que ter.
Aliás, a “crise da Europa” a que nós portugueses mais frequentemente nos deveríamos fazer referência seria ao livro de Abel Salazar com esse título – A crise da Europa –, publicado pela Cosmos em 1942 (repito: 1942), e onde se podem descortinar as razões e raízes do que hoje abusivamente se fala ao usar essa mesma expressão.
O estudo e a reflexão sobre as dificuldades então analisadas por Abel Salazar são forte apoio para entender historicamente as tentativas de ultrapassar um antagonismo já latente entre a internacionalização, interdependência, globalização (sim!, globalização…) decorrentes do desenvolvimento das forças produtivas e da actividade económica, e as fronteiras separando Estados-nações, numa compartimentação autárcica cada vez mais impossível.
(Para já não falar da insanável e sempre agravada antinomia entre a dimensão sempre mais colectiva, social, dessas forças produtivas e a apropriação privada, de classe, do que é por elas produzido, no sentido lato de produção.)

No pós-guerra, com a derrota do nazi-fascismo, o alargamento- deslocação do centro do mundo para o outro lado do Atlântico Norte não podia travar a mundialização, a interdependência ainda que claramente assimétrica – se é que não era sinal da referida crise da Europa em gestação.
O “sistema” hegemónico de Estados-nações europeus, mesmo dentro do mundo capitalista, tinha os séculos contados, para usar muito feliz expressão do professor Avelãs Nunes, aplicada ao capitalismo.
Mas a procura de arranjos entre Estados-nações europeus concertando, pelas relações económicas, o referido antagonismo que até estaria na origem de guerras euro-fratricidas não nasce numa qualquer cabeça iluminada, como de Schuman ou Monnet, até porque, já antes, a reconfiguração e ruptura de alguns desses Estados com o sistema capitalista levara, em 1949, à experiência de articulação de economias planificadas, no quadro do Conselho de Entre-ajuda Económica, CAME ou Comecon. Aliás, nesta busca de origens, há que referir o BENELUX como experiência pioneira em vários sentidos.
Voltando a Abel Salazar (e a 1942), pode-se parafraseá-lo ao dizer que o «problema económico, como o político e o social, da actual Europa (relembro: de há mais de anos), não será resolvido pelas teorias dos homens, sejam eles quais forem, mas pelo próprio jogo mecanóide das forças históricas, segundo as leis da sucessão e articulação de sistemas (ao que chamaria materialismo histórico). Não será resolvido, a curto prazo, por decretos, mas num longo período de séculos, pelos conflitos de forças e suas resultantes. Mas a acção dos homens, mesmo a utopia, integram-se precisamente nestes conflitos, e, desta forma, ela é eficiente, mesmo nas suas formas mais utópicas.»

Esse “jogo mecanóide” das forças históricas que, por minha conta e risco, traduziria em relação de forças numa luta de classes, levou ao caminho percorrido desde o Tratado de Roma ao Acto Único, a Maastrich e à confusão que se lhe seguiu na busca de formas institucionais de federalizar sem baptizar o que se procurava fazer nascer, constitucionalmente entre uma federação de Estados e um Estado federado, um directório a dois ou reduzido a um por fraqueza do outro. União aduaneira, alargamentos, mercado interno (com a libertina circulação de capitais), moeda única e banco central europeu, instrumento e instituição ademocráticos, são, para dizer à maneira portuguesa, carros à frente dos bois para servir objectivos de classe travestidos de cooperação/federalismo, tentando sempre avançar mais que a relação de forças permite, ou aparenta e se força a permitir. Porque, no referido como jogo mecanóide, há o outro lado, o lado de quem está na outra ponta da corda esticada até mais não, e esse outro lado conterá o sentido da História, talvez a utopia, mas com base no estudo da evolução e do progresso no sentido da humanização das relações humanas.
E ele é o da solidariedade entre o que se foi tornando sempre mais interdependente mas também assimétrica, por vezes até ao limite da assimetria e das desigualdades. Ele é o da solidariedade que seja outro nome da cooperação. Ele é o da paz entre povos soberanos, nas formas que cada um encontre para materializar séculos de convivências locais, enraizadamente locais, como tal organizados, respeitando culturas, latitudes, climas, oro e hidrografias mas sem fronteiras ou muros.
O nosso contemporâneo papel na História que se perde nos tempos do antes e dos que estão para vir, será talvez o de dar um contributo importante – porque não dizer decisivo?... se todos o são! –, nesta encruzilhada a que nos trouxe o caminho percorrido.»   

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