terça-feira, março 22, 2011

TVisto - "Ler e depois" - 1

Ler Correia da Fonseca é prazer (e proveito) antigo. Ao seu trabalho, constante, de formiga mas também de cigarra, tão sempre e em tanto lado presente, tão importante para cada um de nós, não é dado o devido relevo. É como daquelas coisas que, de tão nossas, de tão do nosso viver, até nem damos por elas... são-nos.

Pensava neste facto, pelo menos meu e amigo, ao ver que me escapara, num avante! já "arquivado", a crónica "Ler e depois". A tempo a recuperei. E, talvez com remorsos - e porque, nestes dias de atraso, não perdeu um pingo de actualidade nesta voragem (digamos...) conjuntural -, a quero reproduzir. Em duas mensagens:
1.

"Ler e depois"


* Correia da Fonseca

O título deste texto, talvez crónica, propositadamente grafado entre aspas para evitar eventuais suspeitas de desavergonhado plágio, é pilhado a uma das muitas obras de Óscar Lopes, intelectual comunista que é uma das figuras de topo da crítica e do ensaísmo literários no Portugal contemporâneo. Sirva o feio acto da pilhagem como homenagem obviamente modesta ao mestre, mas a tentação foi irresistível. E não por acaso: é que a TVI transmitiu há dias uma breve reportagem acerca da obstinada persistência do analfabetismo no nosso País, espécie de grave doença endémica que resiste à extinção, que coexiste agora com o que se supõe ser «a modernidade», e que tem consequências, um pouco como aquelas moléstias que deixam rasto, como diz o povo. Por isso, como se compreenderá, bem se justificava a reportagem da TVI até como alarme e tácita reclamação de providências, pois que a sabença da leitura abre portas ao entendimento de muitas e variadas coisas, como é sabido, e está no oposto do interesse nacional que tais portas permaneçam fechadas a uma percentagem insuportavelmente elevada dos portugueses. Para mais, como a reportagem referiu, o analfabetismo luso não atinge apenas os velhos, o que a acontecer permitiria supor que haveria de se extinguir em resultado da ordem natural das coisas, mas também adultos e mesmo adolescentes. A sua erradicação é, pois, um combate a travar e um objectivo que se diria consensual se não se soubesse haver os que preferem o povo analfabeto, e por isso tendencialmente mais vulnerável a prédicas vindas de certos púlpitos. Isto não significa, porém, que não saber ler equivalha a não saber pensar e a não perceber o essencial do mundo e da vida. Caberia aqui citar o inesquecível Discurso de Estocolmo de José Saramago e a referência nele contida ao avô analfabeto e contudo sábio, mas não é preciso ir tão longe e tão alto, pois todos sabemos que o entendimento das coisas, designadamente das que mais ferem e marcam o quotidiano de milhares, dispensa a decifração das letras, de tal modo são agrestes. Porém, acontece que a leitura pode acrescentar territórios vastos a essa compreensão inicial, e a conquista deles, tão pouco estimulada pela televisão portuguesa, e mais concretamente pela RTP que ainda há dias se gabava de «cinquenta e quatro anos de serviço público», é uma tarefa cujo atraso tem responsáveis.

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