sexta-feira, abril 25, 2008

O dia acordado

.

Acordaram para o dia

ainda nem madrugada era

(mas tantos não acordaram para o dia

porque dormido não teriam…)

Acordaram para o dia,

para o dia que 25 era

e do mês 4

e do ano de 74

Vestiram a farda de capitão

e juntaram mais um galão

aos três do regulamento,

o galão de um cravo.

Acordaram para o dia

que iam fazer o dia novo

o dia povo

o dia ovo.

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Acordou para dia,

sozinho na cela,

com a unha riscou na parede suja

uma outra manhã acordada em Caxias.

Acordou para o dia,

para o dia que 25 era

e do mês 4

e do ano de 74.

Lembrou os camaradas,

que em Peniche e noutros lugares

punham mais um risco em paredes sujas

como calendários de dias assim contados.

Seria aquele o dia de ir para a tortura?

NÃO!

Acordava para o dia

que ia ser o dia novo,

o dia ovo,

o dia povo.

-----------

Acordaram para o dia,

na casa clandestina,

para mais um dia de luta,

de sobressaltos, de tarefas.

Acordaram para o dia,

para o dia que 25 era

e do mês 4

e do ano de 74.

Reviram as agendas e as gentes a ver

um encontro, uma reunião,

o chumbo para a tipografia,

o papel para imprimir o avante!,

uma luta no seio da luta.

A vigilância, camaradas,

a segurança, camaradas,

não falhar um pormenor, um sinal

que tudo e tantos poria em risco,

de prisão ou até mortal.

Poucos sabiam que acordavam para o dia

que vinham preparando

dia a dia, todos os dias,

o dia novo,

o dia ovo,

o dia povo.

-----------

Acordou para o dia,

na cama vazia e fria,

ausente do corpo amado,

para mais um dia de trabalho e luta.

Acordava para o dia,

para o dia que 25 era

e do mês 4

e do ano de 74.

Preparou o pequeno-almoço,

acordou o miúdo,

ajudou-o a vestir,

levou-o à carrinha,

ouviu a pergunta de todas as manhãs

desde que o tinham levado…

“Mãe… quando é que o pai volta?... será hoje?”

Respondeu, com um sorriso cansado e triste,

“Não sei, filho, era tão bom que fosse…”

FOI!

Acordava o dia

que ia ser o dia novo,

o dia ovo,

o dia povo.

-----------

Acordaram para o dia

com a rádio a dar notícias estranhas,

depois do “Depois do adeus” e de “Grândola, vila morena…”

para mais um dia de trabalho.

Acordaram para o dia,

para o dia que 25 era

e do mês 4

e do ano de 74.

Hesitaram...

entre as recomendações para ficarem em casa

e a vontade de ir para as ruas,

de serem massas e revolução.

Saíram à procura de cravos e da liberdade,

juntaram-se no Largo de Carmo,

exigiram a libertação dos presos políticos

e da Pátria que recuperavam.

Acordava o dia

que ia ser o dia novo,

o dia ovo,

o dia povo.

-----------

Do outro lado da vida,

acordaram estremunhados

e não querendo acreditar.

Alguns saberiam de alguma coisa,

muitos apenas se preparavam

para ir prender e torturar.

Acordaram para o dia,

para o dia que 25 era

e do mês 4

e do ano de 74.

Uns, em desespero,

e assustados com gente e gente nas ruas

que julgavam suas,

ainda dispararam os últimos tiros,

ainda cometeram os últimos assassinatos.

Acordava o dia

que ia ser o dia novo,

o dia ovo,

o dia povo.


23 (e 25) de Abril de 2008
(ilustrado com um desenho de Roberto Chichorro
e um cravo mandado do Uruguai por um amigo e camarada)

4 comentários:

Sal disse...

Foi o dia mais importante que Portugal viveu, em centenas de anos de História.

beijinhos, camarada.
Obrigada por teres resistido,
obrigada por teres lutado.

Anónimo disse...

Terminámos a leitura de dentes cerrados e evadidos por uma confiança que reforça as nossas convicções.Não há vida sem luta.

Sérgio Ribeiro disse...

Foi, diria, um desafio a que quis responder. Por estes comentários, e pelos que também tive no docordel.blogspot.com (poucos mas bons... o texto-poema é muito longo!), valeu a pena, independentemente do que valha como forma de dizer o que sinto e tantos sentimos.
Obrigado!

GR disse...

Ao ler-te, a data (distante) fica tão próxima.
Enquanto uns já gritavam “Vitória” nas ruas, outros limitavam-se às notícias dos jornais, outros ainda a sons estranhos, surgidos do lado de fora da pequena e escura cela, onde muitos Resistentes esperavam explicações de tanta agitação.
Onde tu camarada Resistente Sérgio foste um dos primeiros a sair, podendo abraçar o dia que viria a surgir!

Tanto orgulho temos por ti, pelo que foste, pelo que és!
Obrigada.

GR