terça-feira, abril 04, 2006

Prepare-se para ir à polícia!

Pam! Pam!
As portas das carrinhas batiam lá em baixo, na calçada da Sé.
As duas pancadas ecoavam dentro de cada um de nós.
Em cada uma das celas (“curros”) do Aljube, crescia a expectativa angustiada.
Esperávamos eternidades de segundos, até que um dos postigos se abrisse e o guarda de serviço ao andar gritasse, para um de nós, “prepare-se para ir à polícia”.
Era o santo e a senha, a palavra-chave de todos conhecida.
Aquele que tivesse de se preparar para “… ir à polícia” estava preparado.
Sabia ele, e sabíamos todos, o que significava aquele ruído surdo de portas de carrinhas a bater, lá em baixo, na calçada da Sé, aquela frase fria, aparentemente inócua, que escolheria uma cela, um postigo, um de nós.
Vinham buscar um de nós para ir para o interrogatório, para a tortura, para os dias e noites sem dormir, para o percurso por uma Lisboa cheia de gente apressada e indiferente, para um regresso sabia-se lá quando, sabia-se lá como, e até se regresso haveria…
O detido estava preparado.

E que havia para preparar?
Naquele espaço de um metro e dez por um metro e setenta não havia nada que preparar. A não ser dentro de cada um, naquela luta em que só perdia quem se sentisse sozinho, quem à luta se entregasse como se fosse apenas o preso, aquele preso há semanas ou meses isolado para assim ser preparado para … "para ir à polícia”. Para os interrogatórios, para a tortura, para os dias e as noites sem dormir.
Pam! Pam!
Quando as portas das carrinhas batiam de novo, já com um de nós lá dentro a caminho da António Maria Cardoso, não era alívio o que sentiam os que tinham ficado.
Recomeçava a tortura da espera. Surda, mordida, preenchida de penumbra, pó e palha.
Da espera do próximo Pam! Pam!. Talvez ainda hoje, talvez amanhã…


E, então… Então será – talvez… – a mim que virão buscar.
Este postigo por onde passam frouxos raios de luz, abrir-se-á e ser-me-á dito, num meio berro (que ouvirei como grito meu dentro de mim) “Prepare-se para ir à polícia!”.

Estou preparado! Temos de estar sempre preparados!


(foi assim, comigo, em 1963; foi assim, comigo, em Abril de 1974, até chegar o dia 25; ...)
04.04.2006
desenho de Roberto Chichorro

5 comentários:

betinha disse...

Conheço mais pessoas que, como o sergio, lutaram e sofreram pela liberdade (livre arbitrio, independencia, autonomia, permissão, ousadia, regalias, privilégios, imunidades).
Obrigado por esta magnifica dádiva.

Anónimo disse...

Precisamente no dia 25 de Abril, em que os carrascos fizeram Pam! Pam! na tua pequena e claustrofobica cela.
Nesse mesmo dia em que não te interrogaram, nem torturaram, como nas outras vezes!
Tu desconfiaste!!!
Novamente enfiado na cela, escutavas, confuso não percebias!
Truz! Truz!
Desta vez era o toque da Liberdade!
27 de Abril de 1974 – foi o dia que Abril deixou sair quem tanto lutou por nós!Foram tantos...
Foste tu!

É um privilégio conhecer-te!
Com o mais profundo respeito digo,
Obrigado.

Para ti, um Cravo de Abril

GR

Anónimo disse...

é pá, tinóni!, tinóni!, puta estória.

Sérgio Ribeiro disse...

Obrigado, amigos. Tão diferentes e tão iguais na amizade.

Lobo Sentado disse...

Pá!
Eu não vou ficar calado, mas ainda não tenho tudo preparado...